top of page

Entregadores/Motoristas de aplicativos: reflexão sobre o não reconhecimento de vínculo de emprego

Há alguns anos, no Brasil, tivemos notícia de ações movidas para pleitear o reconhecimento de vínculo empregatício entre a UBER e os motoristas do aplicativo. Entretanto, seguidas decisões da Justiça do Trabalho, inclusive em instâncias superiores, parecem estar se direcionando para o não reconhecimento do vínculo nessas situações.


As decisões, em regra, se baseavam fundamentalmente na ausência de subordinação dos motoristas ao aplicativo.


A argumentação da empresa UBER é que, na verdade, o trabalhador não estaria vinculado a ela, já que essa apenas faz a intermediação entre o motorista e o usuário, que, na verdade seria um algoritmo que faz todo o processo. Ou seja, não haveria de fato um chefe dando ordens, aplicando punições, coordenando as atividades etc. O motorista poderia escolher quando dirigir, não estando configurada sequer a habitualidade, além de não ser utilizado veículo fornecido pela empresa, entre outros fatores.


Com relação ao algoritmo, há um debate sobre o seu papel nas relações entre empresa de aplicativo e motoristas: a depender de como está programado, poderia acabar com a argumentação de ausência de subordinação. Recentemente, o Tribunal Superior do Trabalho (TST - processo n. 1000825-67.2021.5.00.0000) deferiu tutela para impedir a realização de perícia no algoritmo, em que pese o impasse sobre a perícia ainda aguarde decisão definitiva.


De toda forma, com base na análise da situação concreta, alguns juristas enquadram a situação dos trabalhadores de aplicativos como típico caso de parassubordinação, um meio termo entre autonomia e subordinação. Enquanto no trabalho subordinado temos a submissão do empregado ao empregador, no trabalho parassubordinado prevalece a dependência econômica e o intuito de colaboração entre as partes, mediante coordenação com a empresa tomadora do serviço. Assim, o parassubordinado depende da prestação contínua do trabalho para sua sobrevivência, diferentemente do trabalhador autônomo, mas não está submetido a ordens da empresa.


Outra parcela enxerga como uma relação de emprego moderna, uma nova forma de exploração em que a subordinação é suavizada, afinal não há um chefe ou encarregado propriamente dito dando ordens, mas, em tese, um aplicativo ou sistema: são, supostamente, os algoritmos que comandam o trabalho e punem aqueles que fogem às regras estabelecidas. O lobo, agora, vem vestido de cordeiro.


A questão que se levanta neste texto é: há, de fato, ausência de subordinação na relação entre motoristas e empresas de aplicativos de carona ou trata-se de falta de força política desses trabalhadores para fazer valer seus direitos?


“Ora, a discussão é meramente técnica – presença ou ausência de subordinação -, não?”, perguntariam alguns. De fato, há quem debata a questão apenas sob essa ótica; mas a discussão não se baseia somente nesse aspecto, nem poderia.


Com a revolução digital, esses aplicativos se espalharam pelo mundo e abrangem motoristas, ciclistas e empregados(as) de limpeza, como cita matéria do jornal El País Brasil (I) sobre organização dos trabalhadores de plataformas digitais na Espanha:


Os entregadores da Glovo, Amazon ou Ubereats. Os motoristas da Uber. As faxineiras domésticas de plataformas como Wayook ou Clintu. Todas essas empresas que gozam do brilho da modernidade usam aplicativos móveis para conectar clientes com trabalhadores com os quais se estabelece uma relação mais tênue possível e que pode ser encerrada com uma simples mensagem de WhatsApp ou Telegram. “É urgente definir a situação desses trabalhadores. É evidente que não são autônomos: dependem absolutamente das empresas digitais para as quais trabalham. Por trás desta precariedade se escondem situações muito difíceis”, diz Rubén Ranz, coordenador do portal www.turespuestasindical.es

A questão dos trabalhadores por meio de plataformas digitais – aplicativos - como Uber (presente no Brasil desde 2014), iFood (criada, no Brasil, em 2011), Rappi (criada na Colômbia, em 2017), etc. não foi positivada e nos dias de hoje o debate vem à tona.


O curta-metragem “Vidas Entregues” (II) mostra um pouco da realidade dos entregadores de aplicativos no Brasil, mais especificamente na capital do Rio de Janeiro. O mesmo faz o curta argentino “Um click y no trabajás mas”(III). Ambos dão uma boa demonstração da vivencia dos trabalhadores de aplicativos; comenta-se inclusive acerca das punições a que os trabalhadores são submetidos, os cortes nos repasses por entregas, as jornadas exaurientes.


Voltando-nos especificamente aos entregadores das plataformas digitais, impressionam os relatos acerca das jornadas de trabalho, inclusive daqueles que têm outro emprego e usam os aplicativos para complementar renda (o que atualmente é mais difícil, já que, com o desemprego em larga escala, consequentemente há mais trabalhadores se habilitando na plataforma, e o custo benefício também diminuiu – para o trabalhador, obviamente -, sem falar na alta do preço do combustível).


Não parece algo muito saudável emendar uma jornada de trabalho a outra: 08 horas diárias de trabalho no emprego formal e pelo menos mais 03 horas como “empreendedor”. O lema comum na luta pela redução das jornadas na revolução industrial, “08 horas de trabalho, 08 horas de recreação e 08 horas de descanso”, parece uma utopia, mesmo tanto tempo depois.


Em matéria publicada pelo Diário do Nordeste(IV), motoristas comentam sobre jornada exorbitante que praticam e alguns relatam média de trabalho de 12 horas, outros chegando a 15 horas diárias:


Profissionais cadastrados em aplicativos ouvidos pelo Diário do Nordeste, sem se identificar, confirmam ultrapassar a jornada de 8 horas, alguns chegando, em média a 12 horas por dia. Há casos exemplificados de até 15 horas diárias em uma situação atípica. Durante o fim de semana, a jornada costuma ser ainda maior. Há relatos de motoristas que começam a dirigir no sábado às 17h e só param às 8h do domingo, recomeçando o trabalho às 14h e encerrando às 22h, totalizando 23 horas ao volante em apenas dois dias. (redação, 2019)

Em 04 de março de 2020, a Uber anunciou um limite de tempo para os motoristas do aplicativo ficarem online: 12 horas. Convenhamos, ainda assim é uma jornada extensa.


Trazemos, ainda, outro exemplo, não de trabalhador da Uber, mas de outro aplicativo, por meio de outra matéria publicada pelo jornal El País Brasil (V), que apresenta um relato impressionante de um entregador:


Saio de casa no Capão Redondo [na zona sul de São Paulo] umas 9h, e só volto lá pela meia noite”, conta Gabriel Fagundes Guimarães, 23, enquanto tenta ajustar o freio dianteiro quebrado de sua bicicleta. As 15 horas trabalhadas diariamente parecem pouco quando chega o final de semana. “De sábado pra domingo já cansei de emendar direto [fazer mais de 24 horas seguidas de entregas]. Aí nem durmo. Tem uns que dormem na praça, mas prefiro ficar ligado”. É hora do almoço, um dos horários de rush para os entregadores de aplicativo como Guimarães —o outro é o do jantar—, e o app toca interrompendo a conversa com a reportagem. Ele se despede e sai pedalando rumo a um restaurante no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo. Sem o freio dianteiro, perdido quando ele bateu na traseira de um carro.

Na matéria (ibidem,2019), chamam a atenção os valores recebidos por estes trabalhadores por tantas horas de labor, principalmente se considerarmos que a maior parte deles trabalha todos os dias da semana:


Uma pesquisa da Associação Aliança Bike, criada em 2003 com o objetivo de fortalecer a economia que gira em torno da bicicleta, traçou o perfil destes trabalhadores com base em centenas de entrevistas: 99% são do sexo masculino, 71% se declararam negros, mais de 50% tem entre 18 e 22 anos de idade, 57% trabalham todos os dias da semana, e 75% ficam conectados ao aplicativo por até 12 horas seguidas —sendo que 30% trabalham ainda mais tempo. Tudo isso por um ganho médio mensal de 992 reais (seis reais a menos do que o salário mínimo, fixado em 998 reais). O menor valor mensal recebido encontrado no levantamento foi 375 reais, para entregadores que trabalham três horas diárias, e o maior foi 1.460 reais, para 14 horas trabalhadas.


No período de pandemia e isolamento social, seguido do fechamento de parte do comércio e do consequente aumento do desemprego, mais pessoas recorreram aos aplicativos: uns para ser atendidos (se locomoverem evitando o transporte público, pedir entregas de comida, etc.), outros para trabalhar pelos aplicativos.


Em matéria publicada pelo Deutsche Welle (VI), há o relato de alguns entregadores contando dos impactos da pandemia:


Com a demanda em alta, as principais empresas do setor - iFood, Rappi, Uber Eats e Loggi - ampliaram a quantidade de entregadores nas ruas, acirrando a "disputa" por corridas. Por isso, além de começar o dia mais cedo para enfrentar a concorrência em Brasília, Calado agora trabalha mais para ganhar o mesmo que recebia há alguns meses. Antes da pandemia, a sua meta diária de 200 reais era viável. Hoje, está difícil chegar a 100 reais, conta. A dependência cada vez maior dos entregadores no período de isolamento social evidenciou a precarização das condições de trabalhado da categoria no país. Para fins fiscais, eles são autônomos e, em geral, não possuem proteções laborais ou seguros contra acidentes. "Nossas vidas não têm importância nenhuma para essas empresas", diz Calado. "O que interessa para elas é o cliente. Somos descartáveis. Nós nos matamos de trabalhar, mas não conseguimos pagar as contas." Aos 27 anos, Lauanda de Lima também enfrenta dificuldades para sobreviver com o salário de entregadora. Ela perdeu o emprego em marketing durante a pandemia e precisou achar uma forma de pagar mensalidades pendentes da faculdade. Está ganhando entre 60 e 80 reais por dia em corridas que atingiram valores "absurdos" na Grande São Paulo. "Tem muita mão de obra, e as empresas estão diminuindo as taxas. Querem pagar 13 reais para um percurso de 18 km. Isso não cobre nem a gasolina", diz.

Há inúmeras outras matérias sobre a piora nas condições de trabalho dos entregadores de aplicativos na pandemia, como se nota em simples pesquisa por meio de ferramentas de internet.


Os aplicativos adotam meios para controlar valores de corrida (vide dias chuvosos, frios, feriados) e criam de pontuação e rankings dos entregadores, condicionando-os a trabalhar durante longas jornadas para que possam receber mais pedidos. Dessa forma, vão subordinando o trabalhador de forma indireta, mas constante, mitigando sua autonomia ao extremo.


Na prática, os trabalhadores das plataformas digitais acabam encontrando nos aplicativos sua única fonte de renda e, ao contrário do que se defendia no início, em regra, não trabalham a hora que querem e o quanto querem, mas praticamente todos os dias e com longas jornadas, especialmente em horários e dias que o aplicativo paga mais.


O argumento de que as empresas deixariam o país caso tivessem que registrar os trabalhadores, pois seriam muito oneradas, parece incongruente e raso. Não se nega que essa conduta possa, de fato, acabar sendo adotada; a UBER, por exemplo, já deixou Colômbia, Dinamarca e a Catalunha, entre outras localidades (embora tenha deixado de atuar nesses locais por pressão dos taxistas, em regra).


Contudo, deve-se pesar e refletir sobre os riscos e as vantagens de permitir que tais empresas continuem funcionando sem maiores regulamentações trabalhistas a proteger os motoristas e entregadores parceiros. Da mesma forma, é possível questionar quem são os principais beneficiados pela manutenção da situação como se encontra atualmente, que não parecem ser os trabalhadores.


Afinal, não estamos tratando de pequenas empresas, mas, pelo contrário, de organizações que atuam no mundo todo, com vultuoso capital. Ainda assim, a responsabilidade social destas empresas para com os seus “colaboradores” e “parceiros” é mínima, mesmo em época de pandemia, como foi denunciado por parte dos entregadores de aplicativo.


Diante dessa situação, inclusive denunciada pelo Ministério Público do Trabalho, por meio da Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho, divulgou Nota Técnica nº 01/2020, resguardando pela segurança dos entregadores/motoristas. Tivemos ainda manifestações organizadas pelo movimento denominado “entregadores antifascistas”.


Contudo, tais movimentos carecem de força política em um país no qual boa parte das pautas somente avança quando há um forte lobby (vide os inúmeros projetos aprovados de interesse do agronegócio, empresários, bem como das bancadas denominadas de: evangélica e da bala). Além disso, já que não são considerados uma categoria, os motoristas e entregadores de aplicativo tampouco podem contar com o apoio de organizações sindicais, que, de toda forma, têm sido cada vez menos eficazes e representativas, o que explica em parte a retirada de direitos trabalhistas.

Sem um movimento organizado que conceda a eles força política, esses trabalhadores ficam indefesos.


O que este texto propõe, portanto, não é uma discussão puramente técnica/jurídica sobre a existência ou não de vínculo de emprego diante dos requisitos formais, mas levantar o debate de como as pautas (não só no Brasil, obviamente) são tocadas não só por interesses puramente técnicos ou por interesse no avanço social e econômico da população no geral, mas sim, por interesses de certas castas dotadas geralmente de grande poder econômico.


Apesar disso, o Reino Unido, por exemplo, ainda que de forma mitigada, reconheceu a relação de emprego entre a empresa UBER e os motoristas. Trata-se de um reconhecimento precário, em que os motoristas não são enquadrados como employees, que é contrato tradicional, mas como workers, que são, a grosso modo, trabalhadores com menos direitos trabalhistas (VII).


No Brasil, o Ministro do TST e doutrinador, Mauricio Godinho Delgado, votou pelo reconhecimento de vínculo entre a empresa UBER e um motorista, em ação que discutia o tema (VIII). A decisão, entretanto, é isolada e a UBER tem adotado a estratégia jurídica de fechar acordos judiciais no âmbito trabalhista para evitar levar a questão adiante em outros processos (IX).


I- DONCEL. Luis.Os “precários digitais” se organizam para defender seus direitos trabalhistas na Espanha, El País, 2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/01/economia/1512138487_606849.html?rel=mas Acesso em 20 ago. 2021, às 19:47.

II- BIAR, Renato Prata. Vidas Entregues. YouTube. 19 dez. 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cT5iAJZ853c&t=13sduração: 21:29 min. Acesso em 21 ago. 2021, às 04:43.

III- ANFIBIA. Revista. Plataformas 1: Un click y no trabajás más. Dir. Tomás Pérez Vizzón, Argentina:, 2019 (7:47 min). Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=EmB5_6ien0w&ab_channel=RevistaAnfibia. Acesso em 21 ago. 2021, às 05:43.

IV- REDAÇÃO. Motoristas de aplicativos dirigem até 15 horas por dia; entenda o que é a “uberização” do trabalho. Diário do Nordeste, negócios, 05 jun. 2019. Disponível em: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/negocios/motoristas-de-aplicativos-dirigem-ate-15-horas-por-dia-entenda-o-que-e-a-uberizacao-do-trabalho .Acesso em 22 ago. 2021, às 19:52.

V- ALESSI, Gil. Jornada maior que 24 horas e um salário menor que o mínimo, a vida dos ciclistas de aplicativo em SP, El País. São Paulo,07 ago. 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/06/politica/1565115205_330204.html Acesso em 22 de ago 2021, às 16:21.

VI- BONIS, Gabriel. Pandemia Precariza ainda mais o trabalho de entregadores de aplicativos. Deutsche Welle. [S.I.] 10 jul. 2020. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/07/10/pandemia-precariza-ainda-mais-o-trabalho-de-entregadores-de-aplicativos.htm Acesso em 23 ago 2021, às 16:04.



Este texto foi escrito por Rodrigo Ferreira Viana, advogado trabalhista, e revisado por Renata Ferreira de Paula, advogada trabalhista.

82 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page